Pesquisa

07/07/20 Livros

Indisciplina: amuleto e signo de todas as gerações?

Desde os primórdios, bem sabemos que as novas gerações são consideradas desregradas, rebeldes, inconstantes e quase irrecuperáveis, sob a ótica dos “mais velhos” (que quase sempre sofrem de “amnésia seletiva”, esquecendo-se de que também transgrediram os limites impostos por seu tempo, ou ao menos desejaram em seu íntimo fazê-lo). Ajustando o foco dessa temática – conflito de gerações – para a perspectiva escolar, em que, com maior veemência, ainda se privilegiam a ordem e a certeza, o espaço de tensão entre as gerações amplia- se, acabando por desencadear um processo de resistência entendida como uma força que se opõe a outra.

Nesse contexto, o estudioso português Daniel Sampaio* constrói alguns sentidos em relação à palavra “signo” como sinal, símbolo e/ou amuleto, que respaldam, diretamente, o questionamento inicial que nos propomos. Essa interpretação permite-nos não só relacionar esses significados, como também lhes dar sentido quando refletimos sobre a indisciplina e suas possibilidades de superação. Existe uma relação muito íntima entre indisciplina e a hegemônica posição docente, tão bem construída durante toda a nossa (de)formação acadêmica, que nos aproximava muito mais dos deuses do que dos humanos, impedindo-nos de mostrar nossas imperfeições, como se essa postura nos afastasse de nossas convicções profissionais. Ledo engano! Aqui entre nós, quantas vezes seguimos direções
feitas de silêncio, ambiguidades e pouca convicção?

O profissional da Educação, talvez mais do que em qualquer outra área de atuação, incapaz de encontrar espaço em sua vida para articular o exercício das disciplinas intelectual, espiritual e esportiva – segundo Madalena Freire**, inerentes ao ofício docente (e discente) –, acaba por ter poucas possibilidades de compreender o aluno como um produtor cultural, capaz de aprender e ensinar ao mesmo tempo, de forma quase sincrônica.

Imersos nesse necessário exercício, professores e alunos constroem sentimento de pertença em relação à escola, essencial para que ambos promovam e permitam espaços de identificação, nos quais consigam se reconhecer como autores “disciplinados”. Portanto, a organização da escola, uma espécie de personalidade, de “maneira de ser” de seus protagonistas, tem uma relação íntima com as questões da disciplina, indisciplina e, sobretudo, da autodisciplina (verdadeira disciplina) no seio da comunidade educativa. Ora, não há outra forma de desenvolver o sentimento de pertença senão se debruçando sobre seu cotidiano particular para refletir de forma conjunta e corresponsável, objetivando construir significado e criar sentido para o trabalho coletivo.

A tarefa de construção de significado e sentido diz respeito igualmente ao diálogo com outras culturas, outras produções, outras possibilidades, como nos oferece Sampaio ao significar a palavra “signo” como sinal, símbolo e/ou amuleto. Tal significação nos remete à resposta, ao menos parcialmente, da questão inicial: indisciplina escolar, amuleto e signo de todas as gerações? Sem dúvida, a indisciplina é um símbolo, um sinal das novas gerações, que muitas vezes se indispõem socialmente na busca de significado e sentido para sua vida, ou seja, na busca da felicidade. Mas, em contrapartida, não deixa de ser um amuleto, na medida em que oferece pistas para aqueles professores que veem a indisciplina como portadora de elementos a serem considerados na reorganização da intervenção pedagógica. E, portanto, como investigadores que são de sua prática docente, consideram todos os indícios disponíveis (gestos, palavras, olhares dos alunos) como parte integrante de sua ação docente, avaliando-a e redirecionando-a, quando esta, por vezes, não for digna da atenção e do respeito daqueles para a qual foi planejada.

*Daniel Sampaio é médico e doutor na área de psiquiatria. É cofundador das Sociedades Científicas e Núcleo de Estudos do Suicídio em Lisboa e autor de diversas obras nesta área de estudos.
**Madalena Freire é professora primária, arte-educadora e pedagoga. Filha de Paulo Freire e protetora de seu legado, dedica-se desde 1981 à formação de educadores com grupos de reflexão e estudo.

   Compartilhar no Facebook   Compartilhar por WhatsApp