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07/07/20 Livros

Somos uma farsa?

Recentemente, durante uma palestra, o professor lançou uma pergunta à queima-roupa para a plateia, na certeza de que rapidamente a resposta viria: “O que você faz com excelência, ou seja, aquilo que ninguém faz melhor do que você, que te confere uma marca?”. Como eu estava na primeira fila, fiquei olhando para ele com desespero imediato… Logo, pensei, ele vai apontar para mim e terei que dar uma resposta! Mas o professor, com uma generosidade absurda, continuou ajudando “na gastronomia, na costura, no desenho…” Pensando, creio eu, que me ajudaria, mas só piorou a minha situação. Não conseguia me lembrar de nada. Foi quando pensei: Será que eu sou uma farsa? Não existe nada que eu faça muito bem?

A dinâmica atual da vida nos impele a fazer de tudo um pouco e essa multifuncionalidade nos afasta, pouco a pouco, da sofisticação própria da especialidade. Se você fizer parte de uma equipe diretiva escolar, então terá que transitar da pedagogia ao financeiro, passando pelo jurídico, administrativo, contabilidade, construção civil, nutrição, pediatria, enfermagem, etc. Quase que um pouco de tudo. Novamente, lá vem o professor com a pergunta: “O que você faz, livre de dúvidas, que ninguém faria melhor?” Entraria em crise, não fosse a tese defendida por Millôr Fernandes* e resgatada naquele momento, em pensamento, de que: “Quem não tem dúvidas está mal informado”.

Com isso, não quero deixar uma fresta sequer para a acomodação; todavia, quero trazer essa minha constante desconfiança diante do estado de excelência, por mim entendido como transitório, de passagem, ou, ainda melhor, um horizonte que, cada vez que conquistado, se afasta. Sendo assim, o conforto da dúvida é próprio de todos aqueles que estão em movimento – trabalhando, a serviço – e menos daqueles que detêm as verdades, que se “acham” excelentes.

No tempo da velocidade, da fluidez, do volume, dormimos com uma realidade e acordamos com outra. Durante a nossa escolaridade, nunca ninguém questionou o fato de que Plutão poderia não ser um planeta. Já durante a escolaridade dos nossos filhos, em um ano se afirmou que era um planeta e, no outro, deixou de ser… Logo, nunca foi tão necessário o cultivo da curiosidade, característica humana que habita no nosso lado criança. É nesse lado criança, também, que reside o viés perguntador, ousado, que se atira para desvendar o que desconhece e que cria o que ainda não existe. Infelizmente, na passagem para o “reino” adulto, muitos de nós desabilitamos o lado criança e, por consequência, as suas características humanas inerentes. Ora, desde quando é passaporte para ser adulto apagar a criança que existe em nós?

Bom é crescer sendo criança, mantendo a leveza que permite rir de nós mesmos e perguntar tudo o que não sabemos, sem medo dos julgamentos alheios. A fase dos “porquês” não pode passar… deve ser eterna! Nossas escolas ensinam mais a dar respostas certas que fazer boas perguntas e creio que isso precisaria ser revisto, pois tão importante quanto dar respostas certas ou fazer algo com “excelência” é saber construir boas perguntas para despertar novas dúvidas para a humanidade. Foi assim que aconteceram os principais avanços no mundo.

*Millôr Fernandes (1923-2012) foi desenhista, humorista, tradutor, escritor e dramaturgo. Era um artista com múltiplas funções e atividades. Escreveu nas revistas O Cruzeiro e O Pasquim.

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